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Arquivo - Segunda-feira, 25 de abril de 2005 |
A chacina da Baixada Fluminense
A POLÍCIA E A HERANÇA DA DITADURA |
Na terça-feira da semana passada, dia 19, a Polícia Civil do Rio de Janeiro anunciou ter encontrado mais uma prova do envolvimento de policiais militares na chacina perpetrada na Baixada Fluminense no último dia de março: marcas de sangue no interior do veículo Gol prata apreendido na casa do soldado Carlos Jorge Carvalho. Nesse mesmo veículo, já haviam sido encontradas cápsulas de projéteis que os exames periciais comprovaram serem do mesmo tipo das descobertas junto a corpos de vítimas na rua Geni Saraiva, em Nova Iguaçu. A participação de PMs na matança já é dada como certa pela Polícia Federal, que divulgou o resultado do inquérito sobre o caso, indiciando, a partir do depoimento de testemunhas, 9 dos 11 policiais militares já presos preventivamente.
O massacre da Baixada Fluminense lembra a atuação de grupos de extermínio formados por policiais, que agiram principalmente durante o Regime Militar. Foi uma época em que as Polícias do país trabalharam intimamente relacionadas com os órgãos de repressão política, sob comando dos militares.
Nem sempre foi assim, no entanto. As Polícias Militares herdaram muito da estrutura das Forças Públicas que, assim como a Polícia Civil, era submetida ao comando dos governadores de Estado. As Forças Públicas eram milícias surgidas no início do século passado, a partir do treinamento ministrado pelo Exército da França, e eram empregadas de maneira limitada, para controlar agitações populares e realizar policiamento em cidades do interior. O controle dos governos estaduais sobre essas milícias foi drasticamente reduzido durante a ditadura do Estado Novo, inaugurada em 1937 e encerrada em 1945, um período de centralização política exacerbada. Com a democratização promovida após o fim da 2ª Guerra Mundial, os Estados retomaram a autonomia de antes e governadores recuperaram o controle sobre suas polícias.
Com a ditadura militar instaurada em 1964, foram criadas as Polícias Militares, a partir da estrutura das Forças Públicas, mas com sensíveis modificações. A mais importante foi a submissão ao Exército, definida na legislação do regime. Retomando alguns pontos da Carta Constitucional do Estado Novo, de 1937, a legislação dos militares atribuiu à União a responsabilidade de legislar sobre a organização, efetivos, instrução, justiça e garantias das Polícias Militares e condições de sua convocação, inclusive mobilização. Foi criada a Inspetoria Geral das Polícias Militares, órgão do Ministério do Exército. O próprio Exército passou a empregar a corporação na luta contra a subversão urbana e rural: em 1969, por exemplo, os PMs foram treinados para usar metralhadoras para enfrentar os guerrilheiros.
Os anos da ditadura militar também foram a época dos esquadrões da morte. O primeiro desses grupos a ganhar notoriedade surgiu no antigo Estado da Guanabara (hoje incorporado ao Rio de Janeiro): foi a Scuderie Le Cocq, criada em memória do detetive da Polícia Civil Milton Le Cocq de Oliveira. Em 1968, vários corpos de pessoas assassinadas começaram a aparecer com um cartaz ao lado, que tinha o desenho semelhante aos das famosas bandeiras dos piratas: um crânio com duas tíbias cruzadas, mas com um adicional: as iniciais EM (esquadrão da morte) escritas logo abaixo. O grupo agiu no Rio de Janeiro até 1971 e levantamentos da imprensa na época revelaram que 767 corpos foram encontrados com os sinais dos assassinatos do grupo. Mais ou menos na mesma época surgiu em São Paulo outro esquadrão, cujos crimes eram comunicados à imprensa por alguém que se auto-identificava como "Lírio Branco, relações públicas do esquadrão da morte".
A decretação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, que estabeleceu a censura no país, deu ainda mais liberdade a essas quadrilhas. Diversas denúncias apontavam o envolvimento dos esquadrões na proteção de bicheiros, no favorecimento de grupos de traficantes de drogas e até em roubo de carros. Foi nessa época que começou a funcionar na Baixada Fluminense o serviço de segurança a pequenos comerciantes locais, com a eliminação de bandidos que os estariam roubando.
Apenas a partir de 1970 tiveram início medidas para tentar conter essas organizações assassinas. Mas a eficácia dessas ações esbarrou na falta de colaboração nas investigações por parte da Polícia e em ações do governo federal. O governo Médici, por exemplo, chegou a editar uma lei para tirar da cadeia o delegado da polícia civil Sérgio Paranhos Fleury, considerado o líder do esquadrão paulista.
No caso da Polícia Militar, a impunidade ganhou força à medida em que seus integrantes passaram a ser julgados em tribunais militares, o que os colocou à margem da Justiça comum. Os poucos condenados nos anos de ditadura militar foram aqueles envolvidos com crimes comuns, sendo poupados os que se envolveram com a repressão política. Mudanças mais significativas só ocorreram com o fim do regime militar e a implementação da nova Constituição, de 1988, que submeteu a PM de volta à tutela dos governadores e tirou da instituição o status de co-defensora da segurança nacional.
Massacres como o cometido na Baixada Fluminense e outras ações da PM nos últimos anos revelam que muito da herança da ditadura ainda permanece. Particularmente no caso dos assassinos de Nova Iguaçu e de Queimados, seu modo de ação mostrou grande semelhança com os crimes cometidos pelos esquadrões da morte: escolheram vítimas pobres, negras ou pardas na maioria, e as alvejaram com vários tiros, em locais públicos. As semelhanças se ampliam quando se verifica que alguns dos PMs indiciados pela Polícia Federal são acusados de diversos outros crimes, como extorsão, seqüestro e assassinato.
De acordo com a Ouvidoria da Polícia do Rio de Janeiro, aliás, o envolvimento de policiais em grupos de extermínio já ocupa a 9ª posição entre os delitos mais praticados, com 101 denúncias. De forma geral, a ligação de policiais militares com crimes é alarmante. Segundo a Corregedoria da PM do Rio de Janeiro, do início de 2003 a setembro de 2004 foram instaurados 637 inquéritos contra seus integrantes. Na Auditoria Militar fluminense há 1.090 processos em tramitação, sendo que desses, 185 tratam de policiais acusados de roubo e outros 70 são contra PMs envolvidos com seqüestro.
Para a cientista política e pesquisadora da Universidade de Nova Iorque, a americana Elizabeth Leeds, que foi representante da Fundação Ford no Brasil entre 1997 e 2003, a solução para a criminalidade nas polícias só será alcançada quando houver novas relações entre as corporações e a sociedade, para que as primeiras sirvam os cidadãos e deixe de tratá-los como criminosos, mentalidade herdada da época da ditadura. Mas, em entrevista a O Estado de S. Paulo de meados de março, Leeds disse que essa transição deve ocorrer plenamente só "daqui a uns 20 anos".
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