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Arquivo - Sexta-feira, 22 de abril de 2005 |
A morte de João Paulo 2º
NO LUGAR DO CONSERVADOR, UM ULTRACONSERVADOR |
O papa Bento 16, nome adotado pelo cardeal alemão Joseph Ratzinger, ficou conhecido como o braço direito do conservadorismo do falecido papa João Paulo 2º, até por ser mais conservador do que este último. Por isso mesmo, seu sermão pronunciado na primeira missa que rezou como papa, nesta quarta-feira, 20, no qual se manifestou favorável ao diálogo com outras religiões e prometeu dar continuidade às decisões do Concílio Vaticano 2º, surpreendeu os especialistas.
Além das posições doutrinárias conservadoras que assumiu nos últimos anos, Ratzinger será lembrado pela mão que deu na reeleição de George W. Bush à Presidência dos EUA: ele ordenou que os padres americanos não concedessem a comunhão aos católicos partidários da legalização do aborto, entre os quais se incluía o candidato democrata John Kerry. A eleição de Ratzinger, juntamente com a cruzada religiosa do presidente Bush, pode vir a representar um duro ataque ao secularismo -- a separação entre Igreja e Estado, um dos pilares das modernas idéias ocidentais.
O novo papa nasceu a 16 de abril de 1927, em Marktl am Inn, um vilarejo de menos de 3 mil habitantes, na fronteira com a Áustria, perto de Munique. Aos 14 anos, se tornou membro da Juventude Hitlerista, o que havia sido tornado em 1941 obrigatório para todos os adolescentes alemães. Pouco depois, foi dispensado da organização, por ser seminarista. Mas alistou-se como soldado numa unidade antiaérea, da qual desertou em 1944, o que não o impediu de ter sido detido algum tempo como prisioneiro de guerra pelas tropas americanas.
Libertado, prosseguiu seus estudos religiosos e, juntamente com seu irmão Georg, foi ordenado padre em 1951. Tornou-se professor universitário em Bonn, Tubingen e Regensburg. Nessa época, defendia que era preciso combater a excessiva centralização e controle da Igreja pelo Vaticano, tendo sido consultor do Concílio Ecumênico Vaticano 2º, de tendência progressista. Mas anos depois, nas reedições de seus textos, retirou as frases com essas posições, pois, decepcionado com os movimentos estudantis ultracontestadores de 1968, se tornara conservador.
Em 1977 foi nomeado arcebispo de Munique e Freising e, logo em seguida, foi nomeado cardeal, pelo papa Paulo 6º. Foi chamado a Roma em 1981, pelo papa João Paulo 2º, que precisava dos serviços de um brilhante teólogo e de um profundo conhecedor da história e da cultura da Igreja.
No seu longo mandato como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (antiga Santa Inquisição), ele condenou ao silêncio teólogos progressistas como o brasileiro Leonardo Boff, que por isso abandonou o sacerdócio, e o leigo alemão Hans Kueng. Ratzinger obrigou a Igreja alemã a abandonar o serviço de aconselhamento a mulheres que pretendiam abortar, que visava evitar o aborto, mas que Ratzinger considerava como, de certa forma, uma legitimação do desejo de abortar. Também obrigou a Igreja alemã a abandonar sua campanha pelo sacerdócio feminino. Igualmente, obrigou a Igreja americana a deixar de lado sua postura a favor da contracepção e a deixar de divulgar documentos doutrinários sem a autorização do Vaticano.
Os especialistas em questões vaticanas esperam, em sua maioria, que o papado de Bento 16 vá ser tão centralizador e controlador quanto o de João Paulo 2º, ou até mais. O que pode vir a trazer resultados ainda mais desfavoráveis para a ala mais progressista da Igreja Católica. Durante o tempo em que o falecido papa esteve no comando do Vaticano, do ponto de vista da estrutura interna da Igreja, seu pontificado representou, na visão de muitos sacerdotes e teólogos laicos católicos, uma verdadeira contra-revolução em relação ao Concílio Ecumênico Vaticano 2º, que havia aberto todo um leque de diferentes visões; todos pertenciam à mesma Igreja, mas cada um expressava, individualmente, ou em grupos, os seus próprios valores, como a Teologia da Libertação, a teologia de Hans Kueng, etc. O clero poderia ser direitista na Argentina e esquerdista no Brasil e assim por diante. Assim foi nos papados de João 23, de Paulo 6º e de João Paulo 1º.
O papa João Paulo 2º, estreitamente ligado, desde os anos 1960, à organização fundamentalista Opus Dei, fundada na Espanha nos tempos do franquismo e que teve representantes seus nos Ministérios de Franco, tinha uma visão muito mais centralizadora do trabalho pontifício. Abandonou o colegialismo episcopal do Vaticano 2º, segundo o qual os bispos, em suas próprias reuniões e nas reuniões com o papa, eram livres para exporem suas opiniões sobre todos os assuntos e confrontarem suas experiências. João Paulo transformou essas reuniões de debates em correias de transmissão de suas idéias. Só ele podia dar opiniões e o que os bispos podiam discutir era como seguir essas opiniões.
Nos anos 1980-1990, a Opus Dei ocupou os principais cargos de cúpula no Vaticano e, de acordo com o papa, colaborou para a restauração do centralismo e, mais ainda, do conservadorismo na Igreja. Nessa última vertente, a Opus Dei contava com Ratzinger como o principal orientador teológico da Igreja, um dos poucos ouvidos pelo papa. Na verdade, a Opus Dei já havia trabalhado para a eleição do papa João Paulo 2º, pois já contava com ele como seu aliado, desde os tempos em que ele era arcebispo de Cracóvia, Polônia, e recebia dinheiro da organização para fazer viagens e palestras em todo o mundo.
A própria celebridade do papa, suas viagens triunfais que atraíam a cada vez milhões de pessoas -- somando-se tudo, foram dois anos inteiros só viajando, com a presença física de 400 milhões de pessoas, fora os bilhões de espectadores que o viram pela TV, foi um meio de o papa impor seu autoritarismo. Ele se dirigia diretamente ao povo, passando por cima das instâncias da Igreja. Nomeou quase todos os cardeais atuais à sua imagem e semelhança. Diminuiu o poder dos arcebispos que se opunham a seu conservadorismo, criando novas dioceses que reduziram a jurisdição das arquidioceses, como aconteceu com dom Paulo Evaristo Arns em São Paulo.
Disse, em entrevista à revista Veja, o eminente vaticanólogo italiano Giancarlo Zizola que fazem parte da herança negativa de João Paulo 2º "uma política doutrinária temerosa do novo e o abandono do caminho da colegialidade no governo da Igreja prevista pelo Concílio Vaticano 2º. A centralização que caracterizou o pontificado de João Paulo 2º foi sintetizada na exaltação da figura do papa, promovida pelos meios de comunicação. Essa exaltação denota uma figura totalitária, que está acima da Igreja e não no seu interior". E continua Zizola: "Ao mesmo tempo, ele foi responsável pelo endurecimento doutrinário e moral dentro da Igreja, pela anemia da produção intelectual das elites católicas". Essa anemia se impôs ao serem silenciados os críticos, como os teólogos Leonardo Boff, brasileiro, ao qual foi imposto o chamado "silêncio obsequioso"; Edward Schillebeeckx e Hans Kueng, que teve cassada sua licença para ensinar teologia. O papa repreendeu em público, de dedo em riste, o padre nicaragüense Ernesto Cardenal, que foi ministro do governo sandinista.
Além disso, segundo Zizola, João Paulo 2º retirou os poderes de decisão dos sínodos (reunião de bispos com o papa) e das conferências episcopais (reunião dos bispos de um determinado país ou um conjunto de países), ficando todo o poder administrativo da Igreja com a Cúria Romana, estreitamente vigiada pelo papa. A idéia do Concílio Vaticano 2º, dentro da primeira tradição da Igreja, era que o papa governasse com os bispos e não sobre eles, mas João Paulo 2º centralizou todas as decisões. Ele colocou a Opus Dei sob sua jurisdição direta, isto é, fora do controle dos bispos, dos cardeais e da própria Cúria Romana, de modo que essa entidade fundamentalista tinha liberdade total para agir e proclamar suas posições, liberdade que era negada aos teólogos e ao clero.
Esse controle rígido levou a que o papa só ouvisse os seus mais próximos e fiéis assessores nas grandes decisões da Igreja, particularmente os ligados à Opus Dei, em especial no tratamento reservado às mulheres e aos homossexuais, no referente à doutrina sobre contraceptivos e o aborto e ao casamento de padres, mais à ordenação de mulheres. Todas essas decisões, bastante conservadoras, do papa, tiveram pouca repercussão entre os católicos, mas João Paulo 2º estava mais interessado em manter a sua firmeza doutrinária do que em estar antenado com as necessidades dos fiéis. Mesmo porque não conhecia essas necessidades, porque, na hierarquia do Vaticano, as informações e as comunicações só fluíam de cima para baixo.
O resultado é que o papa "foi muito aplaudido e pouco ouvido", segundo Giancarlo Zizola, pois os ensinamentos do papa sobre questões morais não foram seguidos pelos fiéis. Outro resultado foi que a Igreja não soube reagir à onda de dezenas de milhares de denúncias de pedofilia de seus sacerdotes, principalmente nos EUA, porque suas autoridades ficavam esperando as decisões de Roma, ao invés de tomarem a iniciativa das providências. Do mesmo modo, as doutrinas do papa contra o capitalismo neoliberal e contra a guerra não foram ouvidas nem na Polônia, na Itália ou Espanha, países milenarmente católicos que mandaram tropas para a guerra no Iraque, condenada por João Paulo 2º.
Na Europa, berço do catolicismo romano, inclusive na Polônia natal do papa e na Europa Oriental, em que ele teve papel decisivo na erradicação do comunismo, e nos EUA, a maior fonte de rendas da Igreja, as congregações católicas e as vocações para o sacerdócio têm diminuído. Na América Latina, a Igreja tem perdido fiéis para os cultos evangélicos, particularmente neopentecostais. Segundo o Datafolha, a proporção de católicos na população brasileira caiu em apenas oito anos de 75% em 1994 para 70% em 2002, com os pentecostais tendo crescido no mesmo período de 10% para 15%.
Bento 16 parece deve seguir, no essencial, as orientações de seu antecessor. Mas, a julgar pelo que disse no sermão da missa que rezou após a morte de João Paulo 2º e antes do conclave, ele vai investir contra todas as formas de "secularismo", entre as quais citou, "marxismo, liberalismo, coletivismo, individualismo radical, ateísmo, misticismo, agnosticismo, sincretismo". Para o novo papa, a Igreja Católica Romana é a única que pode conceder a salvação, posição que cria obstáculos para o diálogo com outros cristãos. Com relação às religiões não-cristãs, seu relacionamento também não deverá ser tranqüilo: como João Paulo 2º, ele também quis que a União Européia se autoproclamasse como cristã e tentou impedir que a Turquia entrasse na UE, por ser muçulmana. Ratzinger também é da opinião de que o budismo é um "autoerotismo" e, o hinduísmo, um "paganismo".
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