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Arquivo - Domingo, 03 de abril de 2005 |
As mortes das crianças índias no Mato Grosso do Sul
SÓ BOA-VONTADE NÃO BASTA |
Na última segunda-feira, 29 de março, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva homologou 9.300 hectares como terra indígena dos guarani-caiuvás. A área está localizada no Município de Antônio João (MS), região de fronteira com o Paraguai e a cerca de 120 km da cidade de Dourados, onde 15 crianças dessa etnia já morreram por desnutrição desde o início do ano. Apesar de a homologação ainda não garantir a posse definitiva da terra -- a medida é contestada na Justiça por fazendeiros --, mostra a preocupação do governo federal com um dos maiores problemas enfrentados pelos índios e apontado como uma das causas da desnutrição de suas crianças: a falta de terras.
O próprio presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Mércio Pereira Gomes, admite que em Mato Grosso do Sul há cerca de 11 mil índios vivendo em apenas 3,5 mil hectares. Segundo ele, "se fosse um acampamento do MST, só caberiam mil pessoas" naquela área.
Dados do Instituto Socioambiental (ISA) dão perspectivas mais alarmantes ao problema e revelam a complexidade das questões envolvidas. A população indígena brasileira, que era de menos de 300 mil indivíduos em 1996, hoje já é de cerca de 370 mil pessoas. Já o presidente da Funai, citando cifras redondas, baseadas em outras fontes, diz que o total de índios atualmente é de 500 mil e que há 50 anos eles eram apenas 120 mil.
Esse expressivo aumento populacional deve continuar: enquanto a média do crescimento demográfico nacional é de 1,6% ao ano, entre a população indígena a taxa é de 3,5% ao ano. Os especialistas discutem, atualmente, as causas desse fenômeno, que reverteu expectativas de que a população indígena acabaria extinta no país. Entre as hipóteses que estão na mesa há a que explica o aumento populacional pela queda da mortalidade, em decorrência da melhoria do atendimento à saúde. Outra possibilidade em debate é uma elevação da taxa de fecundidade, que estaria em níveis muito superiores aos da população não-indígena, e corresponderia a uma recuperação populacional mais ou menos consciente das comunidades.
Qualquer que seja a explicação, trata-se de um fator extremamente positivo. Mas, paradoxalmente, a combinação de crescimento populacional e pouca quantidade de terras destinadas aos índios, leva, em algumas regiões brasileiras, notadamente no Centro-Oeste e no Nordeste, a crises como a enfrentada na região de Dourados.
O caso dos guarani-caiuvás é exemplar. Eles não dispõem de espaço suficiente para as suas lavouras e sua reserva é escassa de recursos naturais, como afirma o médico pediatra Zelik Trajber, que desde 2001 trabalha com a etnia no Mato Grosso do Sul. Em entrevista publicada no Jornal do Brasil em meados de março, ele disse que a área que os índios habitam não tem nem rio. "Mal e mal, de vez em quando tem um corregozinho, e com água contaminada pelas lavouras [da região]".
Ma das principais causas do problema apontado pelo pediatra é a expansão da cultura da commodity na região -- as pequenas reservas indígenas estão sendo sufocadas pela soja. "Todas as áreas estão poluídas de soja, de defensivos agrícolas.", disse o presidente da Funai em entrevista à Folha de S. Paulo no início de março. Para ele, é necessário que se encontre "um modo de seguir a legislação, de proteger as nascentes dos rios, dentro e fora das áreas indígenas".
Os governos estadual e federal adotaram medidas emergenciais para combater a desnutrição e seus efeitos: foi inaugurada uma nova ala de pediatria do Hospital Universitário em Dourados; distribuída a chamada multimistura (farinha fabricada a baixo custo utilizada como suplemento alimentar) para as crianças desnutridas; o número de famílias indígenas atendidas pelo Bolsa Família cresceu em 484; e foram distribuídas emergencialmete cestas básicas.
Alarmada com a repercussão do caso, uma Comissão Externa da Câmara dos Deputados foi a Dourados no início de março para levantar as causas das mortes infantis. Representantes da Funai, Fundação Nacional de Saúde e o prefeito de Dourados, José Laerte Tetila (PT), foram convidados a falar aos deputados. Tetila reforçou a tese de que a falta de terras é o principal fator que ocasiona a desnutrição entre os índios. Segundo sua assessoria de imprensa, a Prefeitura vem colaborando com ajuda logística na distribuição de cestas básicas promovida pelo Estado do Mato Grosso do Sul.
A boa-vontade demonstrada nos esforços governamentais, no entanto, parece tropeçar em questões que envolvem a cultura e o modo de vida das populações indígenas. As cestas básicas distribuídas, por exemplo, contêm ingredientes que não são compatíveis com seus hábitos alimentares, como açúcar, óleo ou farinha de trigo. Alguns índios não puderam ser incluídos no Bolsa-Família por não possuírem documentos (hoje são 230 as famílias atendidas). Além disso, famílias indígenas retiram seus filhos dos hospitais por não aceitarem que suas crianças sejam submetidos aos tratamentos ministrados pelos médicos.
O pediatra Trajber sugere mais diálogo com os índios, pois "cada pequeno grupo pode ter uma solução para o que pretende". Ele diz que obteve bons resultados na área de saúde infantil quando as equipes passaram a visitar "casinha por casinha" da região e a dialogar com as famílias. Segundo ele, quando chegou, a média de mortalidade infantil era de 140 mortos por mil nascidos vivos, taxa que, em 2004, caiu para 64 para cada mil. De acordo com o médico polonês, naturalizado brasileiro, até a resistência à medicina branca foi caindo, na medida em que os índios passaram a ver a eficiência do trabalho.
Hoje, até mesmo quando se tenta empregar os próprios índios nesse tipo de trabalho, há problemas. A coordenadora-executiva da ONG Saúde sem Limites, Mariana Machado, disse em entrevista à Folha de S. Paulo no início de março que, de fato, não há treinamento adequado aos próprios agentes de saúde, muitos deles indígenas. "São os próprios índios que fazem o atendimento à comunidade. Eles também fazem a prestação de contas. Se nós, que estamos habituados, ficamos enrolados com a papelada, imagine os índios. Eles precisam ser treinados", disse.
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