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    Arquivo - Sexta-feira, 11 de março de 2005
As negociações das regras internacionais da Organização Mundial do Comércio

A ILUSÃO DA MESTIÇAGEM ECONÔMICA
A diplomacia brasileira está envolvida com entusiasmo nas negociações no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) em que se tenta aparar certos espinhos que incomodam as exportações do país e, em geral, dos países pobres. Tratam-se de negociações lançadas a partir de Doha, no Qatar, ainda sob o impacto dos ataques contra Nova York e Washington em 11 de setembro de 2001 e quando se vislumbrava uma estagnação na economia mundial. Propunha-se, então, uma Rodada do Desenvolvimento em que países ricos e pobres fariam concessões mútuas, mas com o objetivo explícito de privilegiar os mais pobres. Reuniões posteriores ao encontro de Doha fracassaram. Embora a Rodada ainda esteja em andamento, na prática, as pelejas ponto-a-ponto assumiram o centro das atenções, como a recente vitória do Brasil em relação aos subsídios dos EUA aos seus produtores de algodão e o embate em torno dos subsídios a produtores de açúcar da União Européia.

Resultados positivos a favor de países pobres como obtido o Brasil dão a impressão de que a OMC poderia ser o instrumento para a superação das desigualdades do mundo. Essa perspectiva teria alguma procedência se se encontrasse na história pelo menos um caso de igualdade intrassocial produzida pela via do livre comércio combinado com os mais elevados sentimentos de justiça. Se não há registro de tal fenômeno no passado, também parece improvável que se possa vislumbrá-lo futuro. É o que indica o estudo divulgado esta semana pelo Banco Mundial, em que se faz uma espécie de simulação dos impactos da liberalização resultante da Rodada de Doha.

O estudo mostra que a pobreza no Brasil seria reduzida em escala insignificante e, ademais, às custas do aumento do desemprego em certas regiões. O jornalista Jamil Chade, correspondente do Estado de S. Paulo em Genebra, fez um resumo preciso e claro do documento do Bird:

Somente 235 mil brasileiros (0,37% da população nacional) sairiam da condição de pobreza como resultado da liberação do comércio prevista para vigorar com a conclusão da Rodada de Doha . "O impacto das negociações para o Brasil, ainda que positivo, é muito modesto", afirma um dos autores do estudo, Joaquim Bento de Souza Ferreira Filho, da Escola de Agronomia da USP. "Mesmo choques comerciais importantes não geram uma dramática mudança na estrutura da pobreza e da distribuição de renda no Brasil”, lê-se no relatório.

Chade cita outro estudo que mostra que, em 15 anos, o impacto seria um pouco mais significativo, mas, mesmo assim, a abertura total dos mercados retiraria da pobreza no máximo 3% da população do Brasil. "Não se pode acreditar que o comércio e o acesso aos mercados ricos resolverão a questão da pobreza no mundo. Há muito mais o que fazer", afirma Thomas Hertel, consultor do Bird. Em todo o mundo, o banco avalia que só 4,5 milhões de pessoas deixariam de ganhar US$ 1 por dia com a Rodada Doha. "Ela precisará ser muito ambiciosa para que não acabe sendo irrelevante para o combate à pobreza", estimou Hertel, lembrando que a redução dos subsídios à exportação só beneficia grandes produtores, e não os trabalhadores rurais.

Chade explica que, para realizar os estudos, os especialistas montaram dois cenários:

“No irrealista, seria estabelecido o livre comércio no mundo e eliminação total de subsídios. Mesmo assim, o número de pessoas no Brasil que sairia da pobreza somaria só 481 mil.

O segundo cenário é de um corte mais modesto nas tarifas. No setor industrial, por exemplo, 50% das barreiras seriam retiradas. No setor agrícola, tarifas cairiam em até 75%, os subsídios domésticos seriam reduzidos e o apoio à exportação seria eliminado. Nessas condições, os especialistas reconhecem que as famílias mais pobres teriam os maiores ganhos no Brasil. A avaliação é de que a renda da camada mais miserável no País aumentaria em 1,3%, ante uma leve queda na renda da população mais rica. [...] Isso é um avanço no combate às desigualdades no País. Mas os resultados seriam tão tímidos que pouca diferença fariam de imediato. Mesmo no caso de um total livre comércio, o aumento de renda das famílias mais pobres seria de 3,6%. [...]

Segundo o estudo, as 235 mil pessoas que seriam retiradas da pobreza no Brasil são as que hoje trabalham no setor agrário. Não por acaso, as regiões mais beneficiadas pela rodada da OMC serão tanto os Estados mais pobres como os que se dedicam à produção de alimentos para a exportação. Praticamente todo o setor agrícola brasileiro ganharia com a liberalização. As atividades na indústria do açúcar aumentariam em 4,5%, enquanto o setor de carnes teria um aumento de 7,78%. No geral, as atividades agrícolas teriam uma expansão de 1,35%. [...]

Na prática, os ganhos com as exportações de alimentos apenas neutralizariam as perdas com automóveis, eletroeletrônicos, máquinas, químicos e outros produtos de alto valor agregado. As atividades no setor de autopeças poderiam ter uma queda de 3,3% com a conclusão das negociações na OMC, enquanto o setor de sapatos perderia 5% e o de materiais elétricos, 1,2%. Os Estados mais industrializados sentiriam mais impacto da liberalização, entre eles São Paulo e Rio de Janeiro, ante a maior penetração de produtos importados. O Estado de São Paulo teria um aumento de 0,72% no número de pobres, o Produto Interno Bruto estadual recuaria 0,25% e o número de postos de trabalho cairia 0,21%.”

Fica, então, a pergunta: De que futuro se quer falar ao som do foguetório que comemora o sucesso agroexportador do país?

Tem todo o sentido o recurso à OMC ou qualquer outra trincheira institucional em defesa dos interesses nacionais, ainda que permaneça em aberto o debate sobre de que setores ou classes sociais são efetivamente esses interesses. A diplomacia brasileira tem se recusado a aceitar uma abertura total dos mercados, o que é apontado pela imprensa conservadora como um dos entraves ao bom andamento das negociações. Contudo, tanto essa imprensa quanto os estafes diplomáticos mostram uma mesma postura de fundo a esse respeito, que parte da suposição de que o comércio internacional e os argumentos da justiça, juntos, inexoravelmente produzirão uma espécie de mestiçagem econômica global, igualando os mais fortes e os mais fracos. Pura ilusão.


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